(E o que esperar quando alguém decide começar uma)
por Marcos Bulcao

1️⃣ Um mundo onde não há “normal”
Quando Freud inaugura a psicanálise, ele nos revela mais do que o universo inconsciente da vida psíquica: ele derruba o conceito de “normalidade” como referência.
Diferente da medicina — onde adoecer é um desvio e curar é voltar a um padrão comum —, a vida psíquica não tem um estado-base universal ao qual se retorna.
Somos todos atravessados por sintomas, lapsos, fantasias — modos singulares de satisfazer o desejo.
Nunca é demais enfatizar essa descoberta: o sintoma não é apenas um defeito do sistema, mas uma invenção necessária.
É a forma que cada um encontra para lidar com o impossível da existência — a falta, o desejo, o desamparo.
Por isso mesmo, falar em “cura” — entendida como retorno a um padrão de normalidade — não faz sentido aqui.
A psicanálise não visa normalizar; ela sustenta a singularidade — o trabalho de cada um com seu modo de desejar, gozar e sofrer.
2️⃣ Então, todos deveriam fazer análise?
Se somos todos atravessados por sintomas e nenhuma vida psíquica é “normal”, surge a pergunta: então todos deveriam fazer análise?
Freud foi direto: não.
Nem toda neurose pede tratamento.
O sintoma — essa solução imperfeita que cada um inventa — pode ser suficientemente funcional.
Há quem viva bem com suas manias, medos e repetições; quem sofra, mas ainda encontre um equilíbrio possível entre o prazer e o desprazer.
A análise começa não porque haja sintomas ou sofrimento, mas porque algo deixa de funcionar.
Quando o sintoma, antes manejável, passa a dominar a cena; quando o que antes servia de proteção se torna prisão.
Quando o sujeito percebe que o que se repete não é coincidência, mas uma lógica de sofrimento que insiste.
Nesse sentido, a entrada em análise não é movida por um ideal de autoconhecimento ou “aperfeiçoamento pessoal” — esses pertencem ao vocabulário das terapias adaptativas.
Na psicanálise, o motor é o mal-estar: o ponto em que as soluções antigas falham e o sujeito começa a suspeitar de sua própria participação no que o faz sofrer.
E esse momento não é definido de fora, mas pela experiência íntima de que algo se esgotou, de que o mesmo problema retorna, disfarçado, em novas formas.
É quando o sintoma já não protege: denuncia.
3️⃣ Quando o sintoma perde sua função
Essa visão do sintoma como estrutural é decisiva em vários sentidos.
Ele deixa de ser um inimigo, algo a ser erradicado a qualquer custo, e passa a ser entendido como uma formação de compromisso: uma estratégia inventada pelo inconsciente para conciliar desejo e interdição, falta e defesa.
Em outras palavras, o sintoma tem uma função — ele tenta preservar algo de nós.
Ou, sendo ainda mais explícito: todo sintoma traz para cada sujeito um ganho psíquico.
Por um tempo, essa solução pode funcionar.
Certos modos de agir, repetir, temer ou controlar ajudam a manter a vida em marcha.
Mas há momentos em que essa estratégia começa a falhar, a gerar mais sofrimento do que benefício.
Quando isso acontece, o sintoma perde seu valor original de proteção e se transforma em pura repetição.
O sujeito se vê refém de algo que já conhece, mas do qual não consegue se desvincular.
O mesmo tipo de relação, o mesmo impasse profissional, a mesma frustração reaparecem — mudando apenas de cenário e de nomes.
É nesse ponto que a análise se torna uma aliada.
Não como instrumento de “cura” — de eliminação do sintoma —, mas como vetor de reorganização dos nossos modos de repetição.
4️⃣ O que esperar de uma análise?
Uma análise começa de modo simples: alguém fala, e alguém escuta.
Mas essa simplicidade é apenas aparente.
O que se inaugura ali é um tipo muito particular de fala — e, sobretudo, um tipo raro de escuta.
O analista não está ali para aconselhar, interpretar de imediato ou propor soluções.
Sua função é sustentar um espaço em que o sujeito possa dizer tudo — inclusive o que não sabe que está dizendo.
A queixa quase sempre aparece como algo estranho a si mesmo, um enigma que desafia a compreensão.
“Por que isso insiste em se repetir?”
“Por que sofro sempre do mesmo modo, ainda que com pessoas diferentes?”
E, como todo enigma, o sintoma pede não uma resposta pronta, mas uma escuta.
5️⃣ Da culpa à implicação
No início de uma análise, a estranheza do sintoma facilmente se traduz em culpabilização.
Culpamos o outro, o destino, a infância, a sorte…
A causa — e portanto a responsabilidade — do sofrimento parece estar fora de nós.
Mas a escuta analítica não se orienta pela culpa, e sim pela implicação.
Sim, nossos sintomas não são aleatórios: eles dizem respeito diretamente ao modo como conseguimos lidar com o mundo.
Com o decorrer da análise, o sujeito começa a reconhecer que algo em sua própria posição contribui para o que se repete.
A pergunta muda: de “Por que isso acontece comigo?” para “Qual é o meu lugar nisso que acontece?”
Esse deslocamento é o ponto em que a análise se torna ética: o sujeito passa a se implicar no próprio modo de gozar, nas repetições que antes atribuía apenas ao acaso ou ao Outro.
Mas não se trata de transferir a culpa — do Outro para si mesmo.
A culpa paralisa.
A implicação responsabiliza: é assumir o protagonismo da própria narrativa.
É quando o sujeito se implica no sintoma que a transformação subjetiva pode, de fato, começar.
6️⃣ Da alienação à separação
Lacan descreveu o início da vida psíquica como uma experiência de alienação, uma consequência inevitável da inserção no campo do Outro.
Traduzindo sem jargões: nascemos desamparados e precisamos do Outro para sobreviver, para nos guiar a dar os primeiros passos no mundo.
Mas esse amparo — e amor — recebidos do Outro não vêm isolados: trazem também seus desejos e expectativas.
A alienação vem dessa lição implícita: entre mim e a sobrevivência — a satisfação, a proteção — está o Outro.
Ou dito de modo mais cru: “Se não agradar ao Outro, arrisco ficar desamparado.”
Crescemos tentando corresponder a esses roteiros invisíveis, muitas vezes sem perceber.
A análise é o processo que permite separar-se dessa trama — não cortando laços, mas mudando de posição dentro deles.
O sujeito passa a distinguir entre o que busca porque é seu desejo e o que persegue para satisfazer a expectativa invisível do Outro.
Essa diferença é sutil, mas crucial: desejar algo para ser reconhecido por isso não é o mesmo que desejar algo porque isso tem sentido para si.
Separar-se não é romper: é deixar de ser comandado pelo que antes definia quem se devia ser.
7️⃣ Você e a análise… hora de se encontrarem?
Freud tinha razão: nem todos precisam de análise.
Mas há sinais de que ela pode ser um bom caminho:
quando você se vê preso em um padrão de sofrimento que se repete,
quando percebe que não é o mundo que se repete — é você que retorna sempre ao mesmo lugar.
A análise não promete cura nem paz definitiva.
Mas pode oferecer algo mais raro: a chance de se tornar autor da própria história, sem precisar repeti-la.