O que resta quando a reconciliação deixa de ser necessária
por Marcos Bulcao

Entre os vínculos que mais nos formam — e às vezes mais nos ferem — estão aqueles que nascem da intimidade familiar: entre pais e filhos, irmãos ou mesmo parentes próximos cuja convivência marca o corpo e o imaginário. São laços que oferecem afeto e pertencimento, mas também produzem rivalidade, frustração e silêncios ressentidos.
A relação entre irmãos talvez traga o retrato mais evidente dessa ambiguidade. O amor fraterno pode coexistir com a competição; o cuidado, com a inveja; a admiração, com o desejo de superação. Em muitas famílias, repete-se um roteiro reconhecível: o mais novo que se sentiu diminuído, o mais velho que se sentiu deslocado — versões opostas de uma mesma ferida, que cada um narra à sua maneira. E quando uma dessas versões se cristaliza como a verdade, o rancor encontra terreno fértil: a reparação passa a depender do outro, esquecendo que o outro também carrega sua própria história.
O rancor como resíduo da esperança
Um tema recorrente na clínica é esse ressentimento persistente, um tipo de rancor que se recusa a passar. Ele se dissolve com o tempo? Ou se transforma apenas quando é ressignificado? Talvez o rancor perdure enquanto o acontecimento original ainda ocupa um lugar importante na economia emocional de quem sofreu — e, mais ainda, enquanto houver esperança de reparação.
Muitas vezes, o que mantém o ressentimento vivo não é a dor passada, mas a fantasia de que ainda é possível obter o que faltou: um pedido de desculpas, um gesto de reconhecimento, uma demonstração de afeto. O rancor, assim, é uma forma de vínculo invertido — mantém o outro presente, mesmo que na ausência.
Aceitar a separação como forma de cura
A libertação emocional não exige apagar o passado, mas reconfigurar o valor simbólico que ele tem no presente. Invariavelmente, isso implica revisar a própria narrativa e, com isso, renunciar à fantasia de reconciliação ideal.
É uma dura verdade, mas com frequência colocamo-nos no lado passivo da história — como se o sofrimento tivesse vindo apenas do outro. É uma tendência humana, demasiado humana: transferir ao Outro a responsabilidade da nossa dor. Mas a verdadeira transformação começa quando reconhecemos nosso protagonismo — nossa implicação — mesmo nas histórias que mais nos feriram.
Descolando do roteiro
Na clínica, é comum ver quanto sofrimento decorre de roteiros emocionais congelados. Espera-se que o pai um dia peça perdão, que o irmão um dia reconheça, que a mãe um dia compreenda, que o amigo um dia volte. Enquanto essa secreta esperança de reparação estiver viva, o vínculo permanecerá ativo — mesmo que na forma do rancor.
Descolar-se desse roteiro não é desistir: é dar ao outro — e a si mesmo — o direito de ser quem é, com todas as faltas e impossibilidades. E, ao fazê-lo, dar-se o direito de seguir em frente sem a dívida de uma reparação — que talvez nunca venha, mas que agora também não precisa mais vir.