
por Marcos Bulcao
Lacan e o retorno ao caso Dora
O caso Dora, publicado por Freud em 1905, é uma daquelas histórias em que o erro revela mais do que o acerto.
Freud acreditava conduzir uma jovem histérica à verdade de seu desejo; mas, sem perceber, acabou capturado pela própria cena que tentava decifrar. Dora o abandona abruptamente — e, no gesto de recusa, inaugura algo que Freud levaria anos para compreender: a transferência.
Ele escreve, quase em tom de confissão, que “a transferência se interpôs entre mim e o tratamento”.
Mas essa constatação, aparentemente modesta, contém uma descoberta decisiva. O amor, o ressentimento, a raiva, a fascinação — tudo aquilo que se passa entre analista e paciente — não são distrações afetivas. São a matéria viva da análise.
O problema, dirá Lacan em 1951, não foi Dora. Foi Freud.
Em sua Intervenção sobre a transferência, pronunciada no Congresso dos Psicanalistas de Língua Românica, ele devolve ao conceito sua força inaugural. Freud viu a transferência, mas não a manejou.
Ao interpretar cedo demais, ao ocupar o lugar do pai — o mesmo lugar simbólico que Dora recusava —, Freud transformou o tratamento em uma repetição cega do impasse que o originara.
Para Lacan, o equívoco não é técnico, é ético. A transferência não é obstáculo; é o próprio campo onde o inconsciente se manifesta.
O sujeito não fala apesar da transferência — fala através dela.
Cada gesto, cada silêncio, cada resistência repete uma estrutura.
E cabe ao analista não interromper esse movimento com o peso de seu saber, mas sustentá-lo.
Por isso Lacan fala em “não agir ativo”: o analista não responde, não interpreta de imediato, não se apressa em curar. Mantém o lugar do vazio — esse ponto de suspensão em que o desejo do sujeito pode finalmente se enunciar.
O que Freud chamava de resistência, Lacan nomeará como verdade em ato.
O que parecia amor, é desejo que se desloca.
O que parecia fracasso, é o início da escuta.
Ao reler Freud, Lacan não o corrige — o radicaliza.
A “Intervenção sobre a transferência” é o gesto de devolver à psicanálise sua dimensão viva: o reconhecimento de que o analista não cura com o saber, mas com o lugar que sustenta.
Dora, afinal, não é apenas uma jovem que interrompeu um tratamento.
É o retrato de toda análise em seu ponto mais tenso: quando o inconsciente exige do analista não uma resposta, mas a coragem de permanecer presente diante do que escapa a ambos.