
Por que é importante falar de consciência em psicanálise
(e por que é crucial para a clínica)
por Marcos Bulcao
Todos estamos de acordo: a psicanálise nasce com a descoberta freudiana do inconsciente, dos conteúdos recalcados e de como eles se organizam e se revelam nos sintomas, fantasias e formas de gozo.
Mas se isso é verdade, não podemos esquecer a pergunta fundadora:
Por que esses conteúdos não podem acessar a consciência?
E, em última instância: qual o papel da consciência na vida psíquica?
Freud já apontava o caminho nos textos inaugurais — me permitam aqui cinco minutos de metapsicologia.
Enquanto organismos vivos, precisamos eliminar tensões e manter um equilíbrio mínimo que nos permita viver. Isso basicamente divide o mundo em dois tipos de eventos: o que desejamos e o que precisamos evitar.
Como seres complexos, porém, processamos uma quantidade imensa de estímulos — e nem tudo pode ou deve alcançar a consciência. A divisão entre processos conscientes e inconscientes, portanto, precede Freud e a psicanálise: tem a ver antes com a limitação da atenção e da energia disponível que possuímos a cada instante.
A consciência desempenha, nesse sentido, o papel de um filtro ativo, encarregado de selecionar, a cada momento, o que merece nossa atenção.
Numa regra simples: só nos tornamos conscientes daquilo que, no presente, pode nos aproximar da satisfação ou nos proteger da dor. Daí a relevância dos fenômenos perceptivos — o território privilegiado dos processos secundários.
Essa função seletiva, embora pouco tematizada, está na base de toda a economia do aparelho psíquico.
A consciência como função seletiva
Freud falava de uma barreira de censura entre o pré-consciente e o inconsciente.
Mas afinal, o que define essa barreira? Por que certos conteúdos ficam fora, e outros entram?
Ao descrever a consciência como um filtro ativo, nomeamos um operador fundamental da metapsicologia freudiana: a ideia de que algo em nós realiza, a cada instante, uma triagem silenciosa entre o que pode ser vivido ou pensado e o que precisa permanecer recalcado.
Isso recoloca a consciência como parte dinâmica do aparelho, e não como um simples “palco iluminado”.
O inconsciente, por sua vez, deixa de ser apenas o “porão” dos recalcados e passa a ser o resto de uma operação seletiva permanente, que define o que pode ou não ser vivido conscientemente.
O que isso muda na escuta clínica
No manejo tradicional, tendemos a pensar o inconsciente como aquilo que falta vir à consciência.
Mas, se a consciência é um filtro, o foco se desloca sutilmente: o analista passa a escutar as regras do filtro. Não apenas o conteúdo recalcado (“o que não foi dito”), mas o critério de seleção (“por que não pôde ser dito?”).
Em outras palavras, o trabalho clínico pode extrapolar o conteúdo excluído e incluir o funcionamento da triagem — as leis singulares que organizam o acesso do sujeito à própria experiência.
De Freud a Lacan: o filtro e o campo do Outro
Reformular a consciência como filtro ativo nos obriga a rever a articulação entre representação, afeto e recalque.
Se, em Freud, o inconsciente pode ser pensado como o resultado de uma operação seletiva constante — aquilo que o aparelho psíquico não pode integrar à experiência consciente sem romper o equilíbrio afetivo —, Lacan desloca essa lógica do plano econômico para o plano simbólico.
O que em Freud aparecia como uma barreira intrapsíquica — a censura — torna-se, em Lacan, uma estrutura de linguagem: o campo do Outro. É o Outro — a rede simbólica que nos antecede — que delimita o que pode ou não ser dito, pensado ou gozado.
Antes de haver sujeito, há um filtro de linguagem que define o sentido possível. É nesse ponto que a consciência freudiana e o campo do Outro lacaniano podem ser pensados como duas faces da mesma operação: a triagem do sentido e da verdade. O inconsciente é o que escapa a essa triagem — o que insiste em se dizer apesar do veto simbólico.
Na clínica, isso significa que o analista não busca “fazer emergir” o recalcado, mas criar condições para que o filtro simbólico se desloque, reconfigurando as condições que o mantêm excluído.
Interpretar é, nesse sentido, criar novas passagens no filtro do Outro — abrir um lugar onde o impossível possa, enfim, encontrar uma forma de dizer-se.
Consciência e clínica
É por isso que falar de consciência, em psicanálise, não é um desvio teórico ou uma curiosidade filosófica — é voltar à própria origem do ofício analítico.
A consciência não é o oposto do inconsciente: é o seu palco de ensaio, o espaço onde se testam — e às vezes se rompem — as fronteiras do possível.
Se escutar o inconsciente é escutar os limites do dizer, a possibilidade mesma de mudança subjetiva nasce da alteração desses contornos móveis, desse filtro que organiza o mundo interno de cada sujeito.
Toda interpretação, quando bem situada, toca esse ponto: desloca o filtro, ainda que minimamente, permitindo que algo até então impensável se torne audível, suportável, enunciável.
A partir daí, a clínica ganha potencialmente um novo instrumento, um novo modo de acompanhar o processo. Pode-se agora ler a evolução do filtro como um vetor da direção da cura:
– O que hoje pode ser dito que antes era impossível dizer?
– O que agora pode ser sentido sem produzir colapso ou culpa?
No curso de uma análise, nem toda mudança sintomática indica avanço. Muitas vezes, o sintoma apenas se reinventa sem que o filtro se altere.
Mas quando o filtro se desloca — quando o sujeito começa a dizer de outro lugar — há sinal de mudança estrutural: o início da travessia da fantasia, o momento em que o sujeito deixa de girar em torno do mesmo gozo e começa a se separar do que o determinava.
Nesse sentido, a consciência como filtro deixa de ser um conceito periférico e se torna um operador clínico. Ela permite acompanhar, na própria fala do paciente, o movimento da cura — não como desaparecimento do sintoma, mas como reconfiguração do que pode ser pensado, dito e vivido.
E talvez seja aí, nesse deslocamento silencioso, que consciente e inconsciente se revelem como verso e reverso da mesma operação.
Quando se alteram os limites do que a consciência permite, é ali também que se percebe a emergência — sempre singular — do sujeito do inconsciente. Se penso onde não sou e sou onde não penso, deslocar o que posso pensar é abrir espaço para o sujeito emergir.
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