Da Ignorância ao Desejo de Saber

por Marcos Bulcão

Há conceitos em psicanálise tão repetidos que correm o risco de se tornarem invisíveis. “Ignorância”, por exemplo, costuma aparecer como um mero ponto de partida: aquilo que será superado ao longo da análise. Mas Freud e Lacan nos exigem uma torção mais radical. A ignorância não é o obstáculo — é o operador.

Não se trata de saber menos, mas de deslocar o lugar onde o saber pesa e onde ele falha. É nesse deslocamento que se abre a possibilidade de um sujeito.


A ignorância do analisante: defesa, não ausência

Freud percebe desde cedo que ninguém chega ao divã em branco. Há, no sujeito, uma força ativa de não-saber — uma resistência que protege o eu de tudo aquilo que ameaça sua consistência imaginária. Essa “paixão pela ignorância” não é um vazio cognitivo: é uma estratégia.

O discurso coerente, a narrativa fechada, o relato cronológico não são expressão da verdade; são modos de sustentá-la à distância. Por isso, muitas vezes, a análise só começa quando o discurso preparado falha: um lapso, uma contradição, um detalhe deslocado. Ali onde o sujeito tropeça, algo do inconsciente se anuncia.

A ignorância do analisante, portanto, não é erro a corrigir: é o terreno onde o trabalho analítico se faz possível.


A ignorância do analista: posição, não impotência

A ignorância do analista é de outra ordem. Não é desconhecimento, mas uma renúncia deliberada ao saber fechado, explicativo, psicológico. É o gesto ético de sustentar um lugar vazio — um lugar que não responde, que não oferece sentido, que não recobre a fala com compreensão empática ou sugestões.

No discurso do analista, formulado por Lacan, essa ignorância assume função precisa: o analista se coloca não como quem sabe, mas como causa — ponto onde a fala do outro se desestabiliza e pode produzir saber novo.

Se o analista sabe demais, o inconsciente cala.

Se interpreta antes da hora, o sujeito se apoia.

Se organiza o sentido, nada se desloca.

A ignorância operante é, por isso, uma prática de rigor: ela cria o vazio necessário para que o sujeito se depare com aquilo que não controla.


Transferência: o laço que torna a ignorância fecunda

Sem transferência, a ignorância não opera — nem do lado do analista nem do lado do analisante. Freud foi claro: ninguém “fala livremente” sem um destinatário simbólico.

A suposição de que o analista pode ouvir algo que o próprio sujeito desconhece é o que suspende a censura e permite que a fala se desvie do script do eu. A transferência não é empatia, simpatia ou vínculo afetivo. É um lugar lógico: o lugar do suposto saber.

A douta ignorância do analista tem a função de sustentar esse lugar sem ocupá-lo. O sujeito supõe um saber, mas não o encontra. E é justamente nesse intervalo — entre o suposto e o real — que algo novo pode emergir.


A consequência clínica: do tropeço ao desejo de saber

O ponto decisivo não está na ignorância em si, mas no que ela produz.

Quando a fala não encontra um apoio imaginário que a complete, ela hesita. Quando o analista não responde com sentido, o sujeito perde o chão. E, nessa queda, aparece o inconsciente.

A análise avança quando o sujeito, confrontado com essa estranheza, pode finalmente formular a pergunta que marca o início do trabalho:

“Qual é a minha parte no que me acontece?”

Essa passagem — da queixa à responsabilidade, da explicação à implicação — não é linear, nem estável. Pode surgir cedo, tarde ou oscilar ao longo do percurso. Mas é ela que confere densidade ao processo.

Responsabilizar-se não é culpar-se; é encontrar o ponto de repetição que organiza o sintoma.

É nesse momento que a ignorância defensiva cede lugar a um desejo de saber que não é curiosidade psicológica, mas abertura ao real do próprio inconsciente.


Conclusão: saber como espaço, não como coleção

Quando Miller descreve o saber em psicanálise como um “conjunto vazio”, ele não o empobrece — ele o liberta. O saber que interessa ao trabalho analítico não é acumulativo; é transformacional.

A ignorância, tomada nessa chave, deixa de ser déficit e torna-se método. É o espaço onde o discurso perde a segurança habitual e pode ser reinventado. É o que permite que o sujeito, em vez de narrar seu sintoma, o encontre — e, encontrando-o, possa operar sobre ele.

A análise, afinal, não é uma pedagogia do saber. É uma prática que exige, de ambos os lados, a coragem de sustentar o não-saber — para que algo, enfim, possa ser sabido.

Deixe um comentário