
Notas sobre ‘Análise Terminável e Interminável‘
por Marcos Bulcao
A pergunta sobre o fim da análise atravessa a psicanálise desde Freud. Análise Terminável e Interminável (1937) não é apenas um texto sobre técnica ou duração do tratamento, mas uma reflexão radical sobre os limites do método, do saber e da própria condição humana. Freud não oferece uma resposta simples. Ao contrário, sustenta uma tese dupla: a análise é terminável enquanto prática clínica, mas interminável enquanto trabalho psíquico.
Essa duplicidade não é um problema a ser resolvido, mas um dado estrutural.
O ponto onde a análise esbarra
Freud é claro ao afirmar que a análise encontra limites que não decorrem apenas de resistências contingentes do paciente. Há algo que não se elimina. A pulsão não é erradicável; o inconsciente não se esgota; sempre resta um resíduo. Esse resto não é um fracasso do tratamento, mas o índice de que a psicanálise não opera no registro da totalização.
Um desses limites aparece de modo paradigmático no que Freud chama de aceitação da castração. Não se trata aqui de um tema anatômico ou moral, mas da constatação de que o significante nunca dá conta do real. Há sempre algo que escapa à simbolização, algo que não se deixa integrar plenamente ao sentido.
A isso se somam as identificações — especialmente as narcísicas e superegóicas — e certas formas de gozo que estruturam o sujeito. Desmontá-las integralmente pode implicar um custo psíquico excessivo: sofrimento intenso, risco de desorganização, ameaça à coesão do eu. Nem tudo o que é inconsciente deve, ou pode, ser levado até o fim.
Por isso Freud desloca a questão: não é apenas resistência do paciente. É também limite do método. Um limite estrutural, não técnico.
O analista e a renúncia ao ideal de completude
Reconhecer esses limites exige algo decisivo do analista: renunciar ao ideal de completude. Insistir indefinidamente, interpretar tudo, forçar atravessamentos pode transformar a análise numa forma de violência. O interminável, quando confundido com ideal, deixa de ser ética e vira abuso.
A análise não é um projeto pedagógico, nem um caminho para uma transparência total do sujeito a si mesmo. Há um ponto em que insistir mais não produz elaboração, apenas sofrimento estéril.
Freud é prudente: algumas resistências cedem; outras apenas se deslocam. O trabalho analítico não elimina o conflito — ele o rearranja.
O que seria, então, um final aceitável?
Freud não define o fim da análise por um critério ideal, mas por sinais clínicos concretos. Uma análise pode ser considerada suficientemente concluída quando:
- o sujeito já não depende de modo intenso da transferência;
- o sofrimento deixou de ser paralisante;
- a repetição foi reconhecida como tal;
- o desejo pode operar sem tutela;
- há capacidade de trabalhar, amar e gerir conflitos sem colapso.
Nada disso implica “cura total”. Implica autonomia relativa.
Depois da análise, o sujeito continua a lidar com conflitos, a enfrentar o desejo, a negociar com o inconsciente. O trabalho psíquico não termina. O tratamento, sim.
Supereu, culpa e sabotagem do processo
Freud destaca o papel particular do supereu, muitas vezes mais rígido que o próprio eu. A culpa inconsciente e a necessidade de punição podem manter o sintoma ativo, sabotar avanços e tornar o sofrimento uma forma de pagamento. Aqui, o limite não é interpretativo apenas: há satisfações paradoxais em jogo.
Além disso, certas identificações são constitutivas do eu. Funcionam como pontos de estabilidade. Tentar desmontá-las completamente pode produzir mais dano do que benefício. Há, portanto, um limite ético na desmontagem: quando ela ameaça a coesão subjetiva.
O resto, o impossível e o fim da análise
Avançando para uma leitura lacaniana, o fim da análise não pode ser definido como dizer toda a verdade, eliminar todo o sintoma ou alcançar um sentido último. Isso seria desconhecer o estatuto do real.
O que está em jogo é outra coisa: o que o sujeito fará com o impossível, com o resto ineliminável. Como sustentar um dizer sem a garantia do Outro? Como viver sem a fantasia de que haverá um significante final que organize tudo?
Nesse ponto, uma formulação provocadora ajuda a pensar: “Nunca estamos tão felizes quanto quando estamos na posição de objeto.” Traduzindo: quando não somos responsáveis, quando alguém decide por nós, quando dormimos tranquilos como o escravo de Shakespeare. O fim da análise implica abrir mão dessa posição confortável.
Desejo, responsabilidade e fim de análise
Enfrentar o desejo é central. Lacan formula isso de modo contundente: não ceder do seu desejo. Quem cede, se trai. Muitas resistências do analisante passam por aí. Antes da implicação, a culpa está sempre fora. Depois dela, surge a pergunta incômoda: qual é a minha parte nisso?
Às vezes, essa verdade é intolerável: admitir que a não persecução do próprio desejo também é uma escolha. Desejar sem culpa. Desejar sem medo da punição.
Talvez seja isso, no limite, uma análise bem-sucedida: não a eliminação do sintoma, mas sua transformação; não a supressão do conflito, mas um reposicionamento diante dele; não a promessa de felicidade, mas a possibilidade de sustentar o desejo sem tutela.
E isso pode bastar.